Amargura em Terra Doce: A Ironia de Viver em Paz com um Gosto de Guerra na Boca
Vivemos cercados de calmarias artificiais. Cafés aconchegantes, playlists com sons de chuva, produtos com nomes que evocam lavanda e afeto, pessoas sorrindo em vídeos sobre autocuidado enquanto cortam morangos em câmera lenta. Tudo é suavidade. Tudo é paz. Tudo é doce. Menos por dentro.
Ironia das ironias: nunca se falou tanto de leveza num tempo tão pesado.
É quase cômico — se não fosse cruel — perceber que enquanto o mundo se perfuma com lavanda e se pinta de tons pastéis, há quem carregue chumbo nos ombros. E o pior: aprende a fazer isso em silêncio, para não incomodar. Para não estragar o feed dos outros.
Você pode morar numa cidade sem crimes, com praças floridas, com clima ameno e mesmo assim ser refém de um cárcere interno. A estética da paz não cura a guerra de dentro. E o que temos hoje é uma overdose de calmaria estética que mascara uma sociedade emocionalmente desfigurada.
A vida parece estar no modo silencioso, mas a mente de muitos está em alarme máximo.
Por isso é irônico — e brutal — viver uma vida amarga num mundo que se finge doce. É como estar com fome dentro de uma confeitaria. A comida está ali, cheirosa, à vista. Mas não é pra você. E ninguém se importa.
A calmaria do mundo moderno é como um açúcar que só aumenta a acidez de quem já está com o estômago corroído de ansiedade. É um calmante para quem não tem insônia, é um mantra para quem não tem vozes na cabeça, é um colírio para quem está cego por dentro.
Não se trata de romantizar a dor. Mas também não dá pra suportar esse teatro da leveza. Às vezes, quem mais sorri nas fotos é quem mais deseja desaparecer. Às vezes, o feed doce esconde um gosto amargo que nem Freud explica.
A solução não está em buscar mais calmaria. Está em parar de mentir. Em rasgar os papéis de personagens que nos deram. Em entender que viver num mundo bonito não é o mesmo que estar bem.
Às vezes, o silêncio da vida calma é só a moldura para o grito interno de quem desistiu de pedir ajuda.
E se você se sente assim, saiba: não é fracasso. É consciência. E talvez, só talvez, essa consciência seja o primeiro passo para transformar essa ironia em revolução.
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